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A Agência Pública, fundada em 2011, "aposta num modelo de jornalismo sem fins lucrativos para manter a independência". Contando com parceiros em mais de 60 veículos de comunicação, a Pública promove o jornalismo investigativo, incentiva o debate democrático, a promoção dos direitos humanos, o acesso à informação com rigor na apuração dos fatos. Para a Agência Pública o "jornalismo não está em crise - está em transformação". Um projeto recente da Agência mapeia iniciativas jornalísticas independentes no Brasil. Disponível on-line, o mapa do jornalismo independente brasileiro conta, inicialmente, com mais de 100 nomes definidos a partir da seguinte metodologia, realizada entre 2015 e 2016: 1) Organizações que produzem primordialmente conteúdo jornalístico; 2) Organizações que nasceram na rede; 3) Projetos coletivos, que não se resumem a blogs; 4) Sites não ligados a grandes grupos de mídia, políticos, organizações ou empresas. A iniciativa, inédita no Brasil, ajuda na propagação de organizações com voz independente e múltiplas linhas editoriais. A Agência Pública reitera que o mapa "é uma ferramenta viva e participativa, que permite aos leitores incluir novos veículos independentes que não necessariamente atendem aos nossos critérios".

Ainda na questão do jornalismo independente na atualidade, um documentário original da Netflix, lançado em 2017, discute a influência de poderosos empresários na manipulação da imprensa. "Nobody Speak: Trials of the Free Press" (Diretor: Brian Knappenberger), revela uma disputa judicial entremeada por discussões sobre os direitos de privacidade e de liberdade de imprensa. Em depoimento, o professor de jornalismo da NYU, Jay Rosen, aponta a fragilidade da imprensa alternativa: "O jornalismo de verdade, aquele que expõe o que os poderosos não querem que seja divulgado, é muito frágil. É algo muito raro. Ele não se manifesta sempre e pode desaparecer". As perseguições aos jornais alternativos, durante a ditadura militar no Brasil, eliminou dezenas de publicações. A censura prévia, outro instrumento de controle, inviabilizou comercialmente outras tantas. Já em 1952 Binômio era, por vezes, apreendido e pressionado por poderes políticos e empresariais. No mesmo documentário o correspondente da NPR, David Folkenflik, fala da urgência na independência jornalística: "Este é um momento decisivo para a imprensa. O jornalismo precisa ser independente, não pode ceder. Precisa ser humilde quando errar, e transparente sobre como chegou a cada conclusão, e garantir que as conclusões estão certas. Tem que ser justo, mas também firme."

Clandestino, alternativo, independente… Libertário, underground, contracultural… As publicações que não se encaixavam na linha editorial benevolente da grande imprensa com os governos vigentes eram vozes destoantes, literalmente um discurso alternativo ao discurso oficial. Cerca de dez mil brasileiros viviam exilados em diversos países nos anos 1970. Um esforço coletivo fez surgir folhetos, jornais e revistas que discutiam a política brasileira, denunciava os crimes da ditadura e pensava os rumos do país. Em termos práticos, essas publicações eram frágeis, "muitas vezes a impressão era pobre, quase ilegível, e a circulação, parca. Só que tudo era lido e relido como se fosse um clássico da literatura" (CARVALHO, 2011, p. 133).

A persistência jornalística de José Maria Rabêlo não terminou com o fechamento do Binômio. As ofensivas militares atingiram em cheio Zé Maria, Euro Arantes, suas famílias e o prestigiado jornal. Impedido de circular, encerra-se em abril de 1964 a história de um dos órgãos mais significativos e marcantes da moderna imprensa alternativa do país. Constatando que a resistência ao golpe não surgiria, Zé Maria parte para um exílio que duraria quase 16 anos. Passando pela Bolívia (onde presenciou um golpe militar meses após sua chegada), Chile (onde outro golpe marcaria sua vida, em 1973) e finalmente França (até 1979), os desafios enfrentados por Rabêlo, sua esposa Thereza e seus sete filhos não foram poucos. Por onde passou, Zé Maria se envolveu ativamente em publicações de críticas contundentes. Na Bolívia organizou um jornal diário, o "Clarín", que vendia 15 mil cópias em apenas dois meses de circulação. No Chile, no início dos anos 1970, participou do jornal "Cartas Chilenas, segunda época". Inspirado por manuscritos oposicionistas produzidos pelos inconfidentes de Minas Gerais contra a dominação portuguesa. As novas Cartas Chilenas, editado por Zé Maria com os companheiros Edmur Fonseca e Cícero Vianna, denunciava crimes da ditadura brasileira. No mesmo tom das novas Cartas no Chile surgiram diversas publicações de brasileiros no exterior como sinal de resistência. Destacam-se na oposição ao regime brasileiro as seguintes publicações: na França a Revista Debate (1970); no Chile as revista Palmares (1971), Temas y Debates (1970) e Campanha (1972); na Argentina o jornal Correo del Brasil (1975); nos Estados Unidos os jornais Brazil: Order and Progress (1971) e Brazilian Information Bulletin (1971); na Argélia o Jornal FBI (Frente Brasileira de Informação - 1969); na França as revistas Debate (1970) e Revolution Brésilienne (década de 1970).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De volta ao Brasil, temendo o reencontro com a nova realidade do país depois de quase duas décadas fora, José Maria Rabêlo é um personagem histórico marcante de Belo Horizonte. Uma pequena parte de sua trajetória se confunde com os eventos narrados até aqui. Sua passagem por três países durante o exílio carrega também partes da história recente da América Latina. Suas publicações, sempre de espírito combativo, são legados inspiradores para os dias de escuridão que vivemos atualmente. Pais do Binômio, ele e Euro Arantes colocaram o jornal na rua como brincadeira, sofreram pressões das mais diversas e enfrentaram o conservadorismo de uma sociedade concentrada em seus valores tradicionais.

 

Em entrevista para esse ensaio, na sala de seu apartamento em outubro de 2017, citada em vários trechos acima, Zé Maria conta que “A vida de Belo Horizonte era toda no centro nessa época" (...) "a Savassi não existia… Centro, Praça Raul Soares, Lagoinha, Floresta, um pouco do Santo Antônio… no começo nós não éramos muito conhecidos então a gente morria de rir andando por todo lado e vendo a reação das pessoas". E continua a relembrar com saudosismo a provinciana capital: "Depois que ficamos conhecidos não tinha jeito, todo mundo vinha abraçar, cumprimentar… O Binômio era um jornal querido, era autor e personagem". Belo Horizonte nunca mais foi a mesma.

O Binômio, limitado pela tecnologia da época, conseguiu se diferenciar no cuidado com a estruturação do espaço visual. Com a tecnologia em constante aprimoramento, disponibilidade e fácil acesso, algumas publicações atuais não têm a ousadia ou criatividade do semanário mineiro, ignorando as imensas possibilidades que isso proporciona. Mesmo com todos os recursos atuais para o uso de tipografias, tratamento de imagens e fotografias, grande parte dos jornais carecem da marca criativa dos profissionais do Binômio. O provincianismo e os interesses comerciais e políticos, encobrem o verdadeiro papel do design: experimentar, criar, inovar e renovar-se. A importância histórica do Binômio no design brasileiro se deve a preocupação primeira em atrair o olhar do leitor no jeito de integrar o conteúdo à forma. A função pictórica das capas do jornal, em constante mudança por seu experimentalismo, transmitia não só as principais notícias da edição, mas funcionava como uma janela de liberdade de expressão gráfica.

Aquele binômio (energia e transportes) hoje pode ser substituído por uma polarização partidária que acirra qualquer discussão política. Militantes da esquerda e da direita (popularmente antagonizados como "mortadelas" e "coxinhas", respectivamente) travam debates cada vez mais pobres e violentos. As redes sociais inflamam os egos daqueles que acham espaço para discursos de ódio e propagação de notícias falsas. O futuro político do país é incerto. Vivemos sob tensão e exemplos diários de retrocessos. "Nunca as forças democráticas precisaram tanto de estar unidas", dizia editorial do Binômio no final da década de 1950. Seis décadas depois ainda é preciso dizer o óbvio!

Clandestino.

Alternativo.

Independente.

Da contracultura da qual o Binômio fazia parte, pela força e coragem de seu conteúdo político e cultural, surgiram vários filhotes diretos e indiretos nas décadas de 1960 e 1970. A influência do "jornal que virou Minas de cabeça para baixo" se espalhou pelas publicações nascidas durante o golpe. Entre 1964 e 1980, segundo Kucinski (2003, p.13) cerca de 150 periódicos nasceram e morreram. A oposição ao regime militar era um traço em comum e, também, uma sentença.

Produzidos em condições precárias, com periodicidade irregular e tiragens de número limitado, as publicações clandestinas durante a ditadura militar estruturavam-se como ponto de oposição ao governo. Para eles não existia censura prévia, corria-se o risco deliberado de divulgar textos e denúncias contra a ditadura. Era característica dessas publicações (jornais, panfletos, cartazes) feitos por organizações políticas de esquerda, divulgar o seu lado da história como forma de combater os desmandos dos governos. Para isso produziam seus materiais em gráficas escondidas, distribuíam os exemplares de mão em mão ou anonimamente nas portas das fábricas ou enviavam pelos correios. Não havia possibilidade de serem vendidos em bancas. Entre os destaques desse nicho de jornais estão o Voz Operária e A Classe Operária, mantidos pelo PCB e PCdoB, respectivamente. Publicações clandestinas não tem precedentes no Brasil atual.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As publicações alternativas, ao contrário, são cada vez mais comuns atualmente. Binômio era alternativo e também independente. Alternativo por constituir uma força política oposicionista e ser voz dissonante no grupo de jornais com ligações com o poder. Independente por não ter vínculos econômicos com o governo e grupos ligados a ele, usando um humor ácido e um jornalismo opinativo. Vale lembrar, novamente, o que dizia o editorial na primeira edição do Binômio, em tom irônico:

Temos noventa e nove por cento de independência e um por cento de ligações suspeitas. (...) Não aceitamos publicidade: a) do governo do Estado; b) da Prefeitura Municipal; c) da Companhia Telefônica; d) da Companhia Força e Luz; e) das empresas de cinema do Luciano; f) de toda e qualquer firma, organização ou entidade que tenha por norma controlar a imprensa por intermédio da publicidade (1ª EDIÇÃO JORNAL BINÔMIO, 1952).

Binômio entra, então, para a galeria de precursores das publicações independentes no Brasil. Iniciada pelo já citado Correio Braziliense (fundado em 1808), a história das publicações de resistência passa, também, pelo Sentinella da Liberdade (1823 - pioneiro do jornalismo de oposição), Revista Ilustrada (1876 - republicana e abolicionista), A Plebe (1917 - jornal anarcossindicalista), Cronica Subversiva (1918 - o jornal de um homem só, Astrojildo Pereira: redator único), O Trabalhador Graphico (1920 - jornal sindicalista dos "fazedores de jornais"), O Homem do Povo (1931 - durou 18 dias, tinha Oswald de Andrade como editor e Pagu como cofundadora), Klaxon (1922 - um mensário modernista) e A Manha (1926 - um “órgão de ataques… de riso”, primeiro jornal humorístico a fazer uso de fotomontagens para ridicularizar autoridades). A paternidade da imprensa nanica, para Zé Maria, é de Tomaz Antonio Gonzaga, autor das Cartas Chilenas na Ouro Preto dos inconfidentes no século XVIII.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Enquanto os jornais mais tradicionais mantinham relações submissas e pouco republicanas com os donos do poder, Binômio apresentava o novo. O jornal renova, como escreveu Ângela Carrato, "a chamada grande imprensa" e serve de exemplo para o que de melhor foi produzido nos anos 1970. Os jornais nanicos que circularam entre 1964 e 1979 devem muito ao Binômio. Tanto na identidade gráfica como na linha editorial, passando pelo uso das fotografias e a credibilidade alcançada com as grandes reportagens, vieram de Minas grandes contribuições para a imprensa opinativa desse período. Sempre lembrado como exemplo maior da imprensa alternativa brasileira, O Pasquim bebeu muito na fonte do Binômio. Criado 17 anos após a fundação da publicação mineira, O Pasquim desenvolve na sua estrutura elementos introduzidos com sucesso já em 1952, como a verve humorística, literária e jornalística de seus integrantes, alguns deles antigos colaboradores do Binômio. Para Zé Maria,

o mais parecido com o Binômio é O Pasquim. Pelo menos até a fase humorística. Ele foi um jornal humorístico, o Binômio foi mais do que um jornal humorístico, foi um jornal alternativo no sentido da palavra, com grandes reportagens, denúncias… Se bem que O Pasquim fez algumas denúncias, sobretudo na última fase que eu inclusive fui diretor (informação verbal)*.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Por isso se faz necessário, neste ano em que se comemora os 65 anos de fundação do Binômio, contar um pouco da história daquele "que poderia ter sido o primeiro semanário de circulação nacional fora do eixo Rio-São Paulo" (CARRATO apud RABÊLO, 1997, p. 189). Lutando contra a hegemonia da mídia oficial, Binômio e seus pares criados durante a ditadura resistiram à censura e opressão o quanto puderam e foram capazes de deixar marcas profundas na história da mídia impressa no Brasil. Também chamada de imprensa nanica (uma referência ao seu formato tablóide, menor que os jornalões clássicos), esses são alguns bons exemplos da imprensa de resistência durante a ditadura: O Pasquim (1969 - semanário de humor político), Ex (1973 - primeiro jornal a denunciar o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, fechado logo em seguida), Opinião (1972 - jornal de oposição, sessão fixa com artigos do Le Monde), Movimento (1975 - denunciou crimes da ditadura, promoveu as campanhas pela anistia e constituinte), Lampião da Esquina (1978 - primeiro jornal gay a circular no Brasil), De Fato (1976 - jornalistas abandonam seus empregos no Jornal de Minas para combater a ditadura e o conservadorismo da sociedade mineira), Tribo (1972 - um "ensaio estético-elétrico-filosófico...”, em Brasília). Esses jornais e tantos outros são, ainda hoje, uma força viva da nossa história e leitura obrigatória para o entendimento de uma época. Millôr Fernandes, colaborador do Binômio e do Pasquim, define o espírito das publicações independentes como livre e vocacional:

coisa feita marginalmente, fora do sistema industrial e fora do sistema de imprensa normal. Mas acredito que a imprensa alternativa, o espírito alternativo é realmente um estado de espírito, é realmente uma vocação intelectual e uma vocação psicológica de não se deixar envolver de maneira nenhuma pelas ideias que estão em torno de você e que tendem a tolher de você uma visão verdadeira do que está acontecendo.

(FERNANDES, Millôr. "Imprensa alternativa: histórico e desdobramentos - A literatura na imprensa alternativa dos anos 70/80 apud OLIVEIRA, 2007, p. 17).

 

 

 

 

 

 

O mercado atual de publicações independentes no Brasil está em ascensão, visível nas diferentes feiras espalhadas pelo país. Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, o pesquisador José Muniz JR comenta que o

fenômeno das feiras independentes lembra a revalorização do comércio local, do pequeno produtor, da pequena escala, do artesanal, do slow e do contato direto entre produtor e comprador. Tendências visíveis no caso dos alimentos orgânicos e da produção de cervejas artesanais. Há ao mesmo tempo a ênfase no empreendedorismo (MUNIZ apud NEWTON, 2015).

O mercado de nicho das pequenas editoras é um caminho possível. É possível e é fundamental socialmente. Publicações independentes representam uma voz já há muito abafada nas grandes livrarias e na grande imprensa onde livros, jornais, revistas, zines, HQs e outros tipos de publicações de viés alternativo perdem espaço para best-sellers e similares. Tais publicações gozam de independência editorial formando um contraponto aos grandes grupos de mídia que, muitas vezes, ceifam diálogos mais profundos e plurais relacionados a cidadania, diversidade e liberdades individuais.

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Imagens: "As capas desta história"/ resistirepreciso.org.br   /  resistirepreciso.org.br/pageFlip/As_Capas_Desta_Historia/index.html
* Entrevista concedida ao autor na residência de José Maria Rabêlo em 25 de outubro de 2017, na cidade de Belo Horizonte.
REFERÊNCIAS:
BLOG DO BREGUEZ. Binômio fez revolução no jornalismo brasileiro. Disponível em: <http://blogdobreguez.blogspot.com.br/2014/12/binomio-fez-revolucao-no-jornalismo.html>. Acesso em: 03 mai. 2017.
CARVALHO, Ricardo. As capas desta história. Ricardo Carvalho (org). São Paulo: Autêntica, 2011. 188 p.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2a. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. 441 p.
NEWTON, Richard. Start-up ajuda autores independentes no processo para publicação de livros. Folha de s. paulo (do Financial Times). Ago 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/08/1668202-start-up-ajuda-autores-independentes-no-processo-para-publicacao-de-livros.shtml>. Acesso em: 09 out. 2017.
OLIVEIRA, João Henrique de Castro de. Universidade Federal Fluminense, 2007. Do underground brotam flores do mal. Anarquismo e contracultura na imprensa alternativa brasileira (1969 - 1992). Orientadora: Adriana Facina Gurgel do Amaral.
RABÊLO, José Maria. Diáspora: os longos caminhos do exílio / José Maria Rabêlo, Thereza Rabêlo. São Paulo: Geração Editorial, 2001. 262 p.

Pesquisa desenvolvida por Lucas Rossi - 2017. Imagens do acervo da Biblioteca central da UFMG.

BINÔMIO 1952 - 1964

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