Espaços: o branco,
o azul, o vermelho
Binômio era underground. Tanto na forma como no conteúdo. A passagem do jornal por diversas oficinas de montagem e impressão resultou nas muitas caras que o periódico apresentou durante seus 12 anos. A linguagem gráfica do Binômio encanta ainda hoje por sua ousadia e precisão. O arranjo das manchetes e das chamadas de duplo sentido que apareciam espalhadas nas primeiras edições do jornal eram acompanhadas por sacadas originais de composição de página. Oséas conta que "essas preocupações estéticas e técnicas não figuravam no dia-a-dia da imprensa brasileira" (RABÊLO, 1997, p.158) e que o Binômio foi um dos pioneiros a diagramar todas as suas páginas. A cara do Binômio foi bastante diversa. Às vezes as mudanças eram de uma semana para a outra e a montagem do jornal, a cargo do designer ou tipógrafo, variava de acordo com o local onde era produzido. A diagramação do Binômio revolucionou não só o jornalismo mineiro, "como repercutiu em todo o País", relembra Orlando Adão de Carvalho (secretário de redação do jornal):
A figura do lead e sub-lead, ou seja, o lançamento do fato principal da reportagem em um primeiro parágrafo e do secundário mais importante no parágrafo seguinte, somente era conhecida de poucos jornais no Brasil. Como secretário, fui incumbido, por um período de três anos, da diagramação e do acompanhamento da impressão no Rio de Janeiro (RABÊLO, 1997, p.159).
Durante a segunda fase do jornal, em fevereiro de 1958, uma reação do então governador de Minas Gerais, Bias Fortes, resultou em uma mudança significativa para a estrutura física e gráfica do jornal. Como retaliação a denúncias de corrupção publicadas contra o seu governo, Bias Fortes proibiu que gráficas mineiras imprimissem o Binômio. Uma manchete do jornal denunciava: "Binômio proibido de circular. Todo o governo mobilizado para liquidar o jornal" (BOTELHO, 2000, p .59). Ele passou, então, a ser impresso no Rio de Janeiro, primeiro em O Mundo Ilustrado e depois na Tribuna de Imprensa. Zé Maria relata que o Binômio foi "o segundo jornal brasileiro a se exilar. O primeiro foi o liberal e histórico Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, editado em Londres no começo do século passado, para fugir às perseguições da Coroa Portuguesa" (RABÊLO, 1997, p.33).
As gráficas do Rio de Janeiro tinham capacidade de imprimir cor e, com isso, Binômio destacou-se dos outros jornais com mais uma inovação, ao introduzir na imprensa mineira o uso da cor: o vermelho! A programação visual de suas páginas agora contava com detalhes em vermelho no título do jornal, nas linhas que marcavam as caixas de algumas manchetes, em formas geométricas sobrepostas ao acaso no corpo dos textos, em propagandas e até com parte do fundo da primeira página em vermelho com a manchete em branco. "Tamanha audácia seria seguida, depois, por outra publicação tão inovadora quanto o Binômio, a Última Hora, de Samuel Wainer, cujo título era em azul" (CARRATO apud RABÊLO, 1997, p.190). Botelho (2000, p.59) relata que várias edições do jornal vieram com uma nota na primeira página dizendo: "Faz hoje 'tantos dias' que o Binômio está sendo impresso a 500 km de sua sede por perseguição do governador Bias Fortes". Botelho (2000, p.61) ainda ressalta que apesar da predominância do vermelho, o azul foi inserido na diagramação de algumas colunas. O resultado do exílio gráfico não poderia ter sido melhor: jornal mais atrativo, maior tiragem, mais espaço no mercado.
Os detalhes em azul aumentavam o impacto das ações publicitárias e dos cadernos especiais. Certas páginas, como a intitulada "Gás desprendido das fábricas pode assas a humanidade" (acompanhada de uma ilustração azul de página inteira), mais parecem um pôster. A intensidade do vermelho aliada à profundidade e seriedade do azul deram ao Binômio a possibilidade de brincar, em suas páginas, com a hierarquia das informações e o poder gráfico e artístico de suas intervenções. O designer do jornal Gazeta do Povo, Lúcio Barbeiro (2015), afirma, em entrevista, que "se há espaços em branco [em um jornal], eles nunca são aleatórios", para ele "o branco não é vazio, é silêncio.” Orlando Adão relembra que "para atingir o alto estágio da diagramação do jornal, abusava de espaços em branco, antes somente usados pelas revistas, com manchetes em corpos exageradamente grandes, em caixas baixas ou altas, fios doze coloridos..." (RABÊLO, 1997, p.159). Mas em algumas ocasiões o Binômio utilizou o espaço em branco não como vazio ou silêncio, mas como um grito. Um grito para atrair a atenção do leitor. Esses espaços em branco, pouco usuais nas décadas de 1950 e 1960, causaram estranhamento. A cara do jornal mais usual era composta por páginas repletas de colunas finas e muito texto. A introdução de desenhos, fotografias, diferentes formas tipográficas e elementos gráficos mudou, aos poucos, a cara dos jornais. E o Binômio assumiu a dianteira nessa revolução, em Minas.
A segunda página da primeira edição apresentava um quadrado branco onde lia-se: "Esse espaço em branco que o leitor está vendo aí em cima deveria ser ocupado por um enorme clichê", e continua: "Infelizmente, porém, por um desses contratempos tão comuns nos lançamentos dos grandes jornais, a obra não ficou pronta, criando-nos assim, um seríssimo problema na hora da paginação. Foi então que tivemos a ideia genial: publicaríamos o espaço e a legenda. E cada leitor idealizaria o desenho da forma que entendesse". A legenda era a seguinte: "A grande invenção: microfone com saco, para aparar as batatas do Paulo Nunes Vieira e outros locutores esportivos que andam por aí." Seria esse um caso de atividade interativa entre jornal e leitor em plena década de 1950? Ao que parece, sim. Imagine quantos não foram os leitores a desenhar suas interpretações da legenda. Podem ter surgido ali rabiscos, charges, caricaturas… O hoje tão comum "faça a sua legenda" em alguns portais de internet já aparecia, despretencioso, na primeira edição do Binômio.
A coluna humorística e crítica 'O Golpe (Contra o estado… de coisas)', comandada pelo personagem General da Banda (escrita por Celius Aulicus), usou espaços de retângulos sem imagens de forma inventiva. Nas seções 'preto no branco' e 'branco no preto', a conversa entre a legenda e os espaços totalmente pretos ou brancos relembrava o humor dos anos iniciais do Binômio. Abaixo de um retângulo preto, lia-se a seguinte legenda em uma das edições: "Nesta magnífica fotografia feita pelo enviado especial de O GOLPE à Amazônia, vemos dez índios da tribo Urubús, nadando nas águas tranquilas do Rio Negro." Em outra edição, acompanhava um retângulo branco a legenda: "Acima, reprodução da listinha organizada pelo General da Banda, dos dez melhores senadores do ano" e também acompanando um espaço em branco na página, essa outra inscrição: "Vista geral do que se conseguiu salvar da redação do BINÔMIO, depois do empastelamento".
Em maio de 1955 mais uma capa inovadora: toda a primeira página ocupada por um anúncio. Logo abaixo do cabeçalho um grande quadrado branco ocupando todo o restante da página. No canto superior esquerdo uma chamada da propaganda, no canto inferior direito um pequeno texto de chamada, em fundo vermelho, para a reportagem paga. Entre esses dois textos um grande vazio. O mercado publicitário se anima com a novidade e o jornal publica um esclarecimento ao leitor dizendo que ele não saiu perdendo sem uma capa tradicional, pelo contrário. A publicidade fez aumentar o número de páginas daquela edição:
Estamos publicando um anúncio que toma toda a primeira página desta edição do Binômio. O leitor pode estranhar a colocação da referida publicidade. Mas, para compensar, elevamos para oito as páginas do número de hoje. Isso vale dizer que o leitor, ao invés de sair prejudicado, saiu ganhando. Ele contará com nada menos de cinco páginas de matéria de leitura, o que representa pouco mais do que normalmente publicamos. Por tudo isso, achamos que o leitor compreenderá a distribuição da publicidade e não virará o beicinho de desgosto. Amém (JORNAL BINÔMIO, MAIO, 1955).
O projeto gráfico do Binômio, principalmente aquele experimentado a partir dos usos do vermelho, é inovador e ainda atual, com diagramação limpa e tipografia uniforme nas chamadas e no corpo das matérias. Era reconhecido, portanto, como uma escola de jornalismo, uma publicação que ditaria tendências estéticas de outras publicações do período. Cabe lembrar, também, que o trabalho de confecção do jornal não era simples. Usava-se um sistema de composição a linotipo e de impressão em rotativas, o que poderia comprometer, segundo Oséas, "toda a diagramação, se não houvesse uma atenção rigorosa na oficina, capaz de detectar qualquer erro, do primeiro ao último momento" (RABÊLO, 1997, p.158). A edição do Binômio em Juiz de Fora sofria ainda mais transtornos com a proibição da impressão em Minas. O conteúdo vinha até Belo Horizonte para ser diagramado e depois seguia para impressão no Rio.



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Em 1967 era lançada uma das canções marco da Tropicália: "o sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça / quem lê tanta notícia / eu vou / por entre fotos e nomes / os olhos cheios de cores / o peito cheio de amores vãos /eu vou / por que não". Caetano Veloso, autor da música, antecipava alguns dos sentimentos que seriam varridos do Brasil um ano depois com o Ato Institucional No. 5 (AI-5), durante o governo do general Costa e Silva. A alegria e a liberdade enfrentavam um duro golpe (mais um). Essa música vem a mente quando se fala do jornal O Sol, publicação carioca de ultravanguarda do jornalista Reynaldo Jardim. A lenda dizia que a música de Caetano fazia referência ao jornal, mas o jornalista Ruy Castro (2013, p. 12-13) desmente o fato apontando as diferentes datas de criação da música e da publicação. O Sol durou pouco (setembro de 1967 a janeiro de 1968), mas deixou sua marca, principalmente no modo de leitura inovador. A diagramação do jornal dividia a página em quatro partes onde eram dispostas as notícias. O design era prático, o jornal podia ser dobrado em quatro partes ficando em um formato compacto para facilitar a leitura. Binômio e O Sol têm muito em comum. Na linguagem escrita, no tom oposicionista, no tratamento tipográfico, no uso de fotografias, no time ilustre de colaboradores. A curta sobrevivência de O Sol tem importância fundamental na história das publicações independentes de resistência à ditadura, papel que o Binômio poderia ter exercido caso tivesse sobrevivido ao golpe.
Modos de leitura
O jornal atual carece de modos de leitura diferenciados. Independentemente do formato, caímos sempre na mesma rotina de leitura, abrindo da mesma forma, dobrando da mesma forma, descartando da mesma forma. Há que se considerar como será a relação entre o impresso e o leitor. Formatos como standard e tablóide podem carregar alguns estereótipos, em parte desconstruídos atualmente (o primeiro é historicamente tido como um jornal de "classe", aristocrático; o segundo como popular. A palavra tablóide virou sinônimo de sensacionalista). Mas a característica mais em alta hoje é a praticidade, e formatos menores ganham cada vez mais espaço.
Uma ideia interessante introduzida já na primeira edição do Binômio foi a presença de duas capas. O cabeçalho da primeira e da última páginas era o mesmo e a leitura ficava a cargo do usuário. Coexistiam, portanto, duas manchetes principais. Posteriormente, a cor também ajudava no modo de leitura guiando o leitor, primeiro, pelos pontos mais importantes daquela edição.

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REFERÊNCIAS:
BIBLIOTECA NACIONAL. Vossa Senhoria – o menor jornal do mundo. Disponível em: <https://www.bn.gov.br/explore/curiosidades/vossa-senhoria-menor-jornal-mundo>. Acesso em: 29 nov. 2017.
BOTELHO, Nicolina Maria Arantes, M. S., Universidade Federal de Viçosa, outubro de 2000. Sociedade, linguagem e jornalismo: o humo do "Binômio nos anos 50 e 60. Orientador: José Benedito Pinho. Conselheiros: Fábio Faria Mendes e Geraldo Magela Braga.
CASTRO, Ruy. Letra e música: A canção eterna (vol. 1); A palavra mágica (vol. 2). São Paulo: Cosac Naify, 2013. 144 p.
RABÊLO, José Maria. Binômio - edição histórica: O jornal que virou minas de cabeça para baixo. Belo Horizonte: Armazém de Ideias/Barlavento Grupo Editorial, 1997. 260 p.
SAYURI, Juliana. Conheça o menor jornal do Brasil, que tem o tamanho de uma moeda. Folha de S. Paulo.Jun. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/06/1895456-nova-fase-do-menor-jornal-do-pais-de-divinopolis-faz-um-ano.shtml>.Acesso em: 29 nov. 2017.
TAVARES, Marcos. O branco não é vazio, é silêncio. Gazeta do povo. Abr. 2012. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/design-de-papel/o-branco-nao-e-vazio-e-silencio/>.Acesso em: 25 out. 2017.
WELBERT, Ricardo. Menor jornal do mundo eleito pelo guinness book é relançado em MG. G1, Ago. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/mg/centro-oeste/noticia/2016/08/menor-jornal-do-mundo-eleito-pelo-guiness-book-e-relancado-em-mg.html>.Acesso em: 29 nov. 2017.
Medindo 3,5 cm por 2,5 cm o jornal Vossa Senhoria é a menor publicação do gênero no Brasil. Reconhecido pelo Guinness como o menor do mundo em 2000 (título que perdeu em 2012 para o jornal português 'Terra Nostra', que mede 1,82 cm por 2,53 cm) foi fundado em 1935 pelo jornalista e gráfico Leônidas Schwindt, em Goiás. Originalmente medindo 9 cm x 6 cm a publicação rodava 2500 exemplares na década de 1940 e sobrevivia com anúncios locais. Leônidas fez um jornal combativo, humorístico, crítico, defensor de causas sociais. Com alma de 'Binômio' em um corpo enxuto, Vossa Senhoria apostou, e ainda aposta, nas poucas palavras para fazer-se ouvir. Em edição de 2 de agosto de 1947, a realidade política transcrita nas pequenas páginas do jornal ainda é, como de praxe, uma realidade amarga:
As alianças dos partidos políticos em questões municipais nem sempre trazem resultados desejados. Na teoria, nas convenções, nos planos delineados, tudo parece fácil e bonito, mas na prática todas as falhas se apresentam. Os partidos políticos fazem como o gato que ensinou à onça todos os pulos, menos o pular para trás (G1, 2016).
Entre os anos 1980 e 2007, Vossa Senhoria chegou a 5000 assinantes. Reeditado desde 2016 por Leida Reis e Milton Nogueira, esta pequena joia do jornalismo brasileiro grita: "Brasil: Vende-se!" (Setembro de 2017, nº 544).
A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional disponibiliza algumas edições do Vossa Senhoria da década de 1940. Clique aqui para acessar.

