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Diálogos e Dissensos

Binômio colecionou desafetos, e não somente militares. Jornais concorrentes e políticos adeptos ao conservadorismo tentaram difamar o jornal sempre que surgia uma oportunidade, e de preferência publicamente. Atento a esse movimento para desmoralizar a publicação surge uma ideia engenhosa: já a partir da terceira edição aparece a coluna "Binômio dá o que falar", espaço dedicado aos comentários maldosos dos inimigos do jornal (e também alguns comentários amigos). Essa estratégia de marketing fez o reverso do que era esperado pelos seus detratores. Dar espaço às críticas negativas transformou-as imediatamente em piadas. Lia-se em edições de 1952 na coluna "Binômio dá o que falar":

"O Binômio é um atentado ao pudor público." (Folha de Minas, órgão oficioso do governo do Estado.)

"Com o Binômio renasceu finalmente o humorismo mineiro. É um grande jornal." (R. Magalhães Júnior, grande escritor e teatrólogo, em sua coluna no Diário de Notícias, do Rio.)

"Jornal desaforado e fescenino. Se a polícia o fechou é porque tinha fortes razões para isso." (Deputado governista Hermelindo Paixão, em aparte na Assembléia Legislativa.)

"Novo e moderno jornal humorístico surgido em Minas." (O Globo, do Rio.)

"Não sei onde está a graça do Binômio. Mas o diabo é que vende mais do que picolé de cereja." (Jair Silva, cronista do Estado de Minas, crítico do Binômio.)

"O mineiro é francamente do Binômio. Binômio é tudo em Minas. Binômio deve ser tudo no Brasil." (Correio da Manhã, Rio.)

"Assim sendo, livres estão os mineiros do famigerado quinzenário, que há muito vinha deslustrando as tradições de nossa terra, com suas anedotas imorais, suas piadas insossas e suas campanhas contra pessoas de bem." (Tribuna de Minas, sobre a depredação do Binômio.)

"Representa uma ameaça à família mineira." (O banqueiro tarado Antônio Luciano.)

"É um jornal que diz a verdade. A polícia ainda acaba com ele." (Um popular na Praça Sete.)

"Binômio, pasquim de inspiração nitidamente vermelha, segundo os moldes traçados pelo Congresso de Varsóvia..." (O antigo espião nazista Alexandre Conder em artigo publicado na Tribuna de Minas.)

Frases como a da Folha de Minas ou do Antônio Luciano cabem muito bem no contexto atual do Brasil, onde uma onda de moralidade começa a se levantar partindo de meios políticos e religiosos. Poucos meses depois de sua estreia, o Binômio já sofria nas páginas dos jornais conservadores. O sucesso do jornal (com tiragem cada vez maior) provocava reações exacerbadas:

A campanha agora partia principalmente dos demais jornais, que, intrigados com seu crescimento e querendo agradar o governo, repetiam incessantemente que se tratava de uma publicação pornográfica, obscena, que ameaçava os bons costumes e a moral da família mineira. A cantilena moralista se estendia por todo Estado e não faltavam até pessoas de boa fé que ficavam impressionadas com o que liam e acabavam achando que ele devia mesmo ser fechado (RABÊLO, 1997, p.22).

Uma estratégia de contra-ataque do jornal às acusações de imoralidade veio no número 14, em novembro de 1952. Com uma semana de antecedência anunciava-se que “no próximo domingo o ‘Binômio’ circulará extraordinariamente com uma edição imprópria para menores de 18 anos. Esse número o senhor não deve levar para casa. É apenas para ser lido e rasgado imediatamente”. Assim a polêmica já tomava conta da capital. "Aquilo ali foi um golpe fantástico", relembra Zé Maria, "o Binômio nunca fez pornografia, observe isso, nunca fez. Usava muito o duplo sentido. Ficou aquela expectativa na cidade de 'o que vem por aí?', até a polícia se preparou"* montando um cerco para impedir a venda do jornal no domingo, mas a distribuição foi antecipada para o sábado, desmontando o plano de censura. Com uma distribuição diferenciada com a intenção de chamar a atenção dos leitores e fazer barulho, a tiragem passou dos 30 mil exemplares. Lia-se na capa: "Edição imprópria para menores de 18 anos. Não pode ser exposta nas bancas". A ideia por trás da edição imprópria era simples, porém um golpe certeiro naqueles que insistiam em desmoralizar o único jornal independente da cidade. Zé Maria conta qual o teor do conteúdo daquele número de 16 de novembro:

E que trazia o número de tão pecaminoso assim, cuja expectativa mexeu com a população e exacerbou o furor repressivo das autoridades? Exclusivamente matérias transcritas dos jornais sérios que nos combatiam, que eram muito mais grosseiras e escabrosas do que tudo o que o Binômio publicava, sem acrescentar uma só palavra, a não ser uma nota explicativa, o nome e a data de cada publicação citada. (...) Essa edição repercutiu em todo o país e fechou para sempre a boca da imprensa que nos criticava (RABÊLO, 1997, p.22).

Ainda na edição para maiores de 18 anos, Binômio traz um editorial impensável na imprensa atual. Criticando a imprensa e seus arranjos com o governo e suas verbas publicitárias, o texto intitulado "Advertência aos leitores" é uma aula de jornalismo e de defesa da independência editorial:

Para tais pessoas, o nosso jornal deve ser repudiado, fechado, destruído, atomizado. Os outros, entretanto, podem entrar no mais recesso de seus lares, para formar a consciência de suas filhas e suas esposas. O nosso pertence ao redil de Satanaz, enquanto os demais são enviados da Providência Divina, e encontram sempre as portas dos lares mineiros abertas de par em par para recebê-los, como se recebe a um médico ou a um sacerdote. Os mesmos falsos catãos que murmuram contra o BINÔMIO, não se envergonham de recomendar para seus entes queridos a leitura de uma «Folha de Minas» ou de um «Diário Católico», por exemplo, cujas matérias para transcrevermos em nossas páginas tivemos de inserir numa edição especial, publicada com a advertência que encima a literatura proibida dos folhetos vendidos clandestinamente nos pontos suspeitos da cidade. Depois da leitura deste número, poderão os nossos leitores ficar sabendo onde estão as imoralidades da imprensa belorizontina, se no BINÔMIO ou nos chamados jornais sérios, para os quais o governo de Minas reserva mensalmente uma verba de publicidade superior a 1 milhão de cruzeiros. Lamentamos mais uma vez que tenhamos sido obrigados a prestar esses esclarecimentos, levando aos nossos leitores a literatura deletéria, mórbida e escabrosa que os nossos prezados colegas frequentemente inscrevem em suas páginas. Mas era preciso mostrar à população «que o diabo não é tão feio assim como se pinta» (14ª EDIÇÃO JORNAL BINÔMIO, 1952).

A 'edição imprópria' mudou de vez a forma de tratamento dos concorrentes, "nunca mais disseram nada", conta Zé Maria. "Cada coisa que está lá foi muito bem pensada, essa edição foi muito trabalhada. O editorial era excelente, a senvergonhice desse editorial… posando também como moralista, defensor dos valores tradicionais. Tem uma nota ali que é formidável: 'D. Heroina e o Pinto / "Tribuna de Minas" publicou em sua primeira página, no dia 5 de setembro deste ano, a seguinte comovedora notícia: "Despacho na Secretaria de Educação sobre uma professora, Heroina Freitas, que pediu a juntada do sobrenome Pinto: "Não consta que d. Heroina Freitas tenha Pinto. Se o tem, não o usou até agora. Se o Pinto e do seu marido, tem o direito de usá-lo oficialmente. À consideração superior. Defiro a d. Heroina o uso do Pinto, desde que prove sua existência.' Isso aí não pode ser esquecido, uma matéria como essa... E vendeu muito, quando a polícia chegou já tinha acabado. Essa edição foi um achado, um negócio magistral" (informação verbal)*.

Os jornais de Minas, na década de 1950, eram representantes de uma voz política e conservadora muito potente. Essa voz representava, em parte, a população. Ou manipulava seus leitores a favor de seus ideais. A liberdade de imprensa não era só subjetiva como submissa. Binômio rompia os cadeados que "protegiam" a tradicional família mineira do que acontecia de verdade fora da imprensa oficiosa e autocensurada. Atuando como órgão opositor e sem amarras, Binômio usou toda a sua força criativa, editorial e gráfica a favor de uma melhor e mais eficiente disseminação de suas ideias. Por anos o jornal de maior tiragem da imprensa mineira, Binômio era combatido por influenciar a opinião pública através de suas denúncias dos jogos do poder.

A esfera da opinião pública começou a ser discutida na França do século XVIII "quando o termo entrou em uso pela primeira vez e quando os filósofos o invocaram  a fim de transmitir a ideia de uma autoridade suprema, ou de um tribunal supremo, ao qual os governantes tinham de prestar contas", segundo o historiador americano Robert Darnton (2014, p. 19-20). A "esfera pública" foi definida pelo sociólogo e filósofo alemão Jurgen Habermas como "o território social localizado entre o mundo privado da vida doméstica e o mundo oficial do Estado" (HABERMAS apud DARNTON, p. 19-20). Nos anos 1950 e 1960, no Brasil, a formação da opinião pública, através da imprensa, era liderada pelo lado mais forte dos acontecimentos. A manipulação das massas pelas mídias que elas consumiam era eficiente, e ainda é. Na Paris do século XVIII, na Belo Horizonte do século XX ou dos tempos atuais, a opinião pública é controversa. Mino Carta (2015), diretor de redação da revista Carta Capital, questiona: "A questão se reveste de extraordinária complexidade. Até que ponto é pública a opinião de quem lê os editorialões, ou confia nas elucubrações de Veja? Digo, algo representativo do pensamento médio da nação em peso?”. O acesso a diferentes meio de comunicação na formação da opinião de uma população é de fundamental importância, mas como fazer ser ouvida a voz de órgãos independentes em um país onde a imprensa que domina é aquela formada por monopólios de poucas famílias poderosas? Pierre Bourdieu, sociólogo francês, começa artigo intitulado por "A fábrica de opinião pública", com a seguinte reflexão:

O homem oficial é um ventríloquo que fala em nome do Estado: assume uma  postura oficial – com todo o teatro do oficial –, fala para e se coloca no lugar do grupo ao qual se dirige, fala para e se coloca no lugar de todos, fala como representante universal. Análoga ao homem oficial está a noção moderna de opinião pública. O que é essa opinião pública evocada pelos criadores do direito das sociedades modernas, as sociedades em que o direito existe? Tacitamente, é a opinião de todos, da maioria ou daqueles que contam, dos dignos de ter uma opinião. A opinião pública é a opinião esclarecida, a opinião digna do termo (BOURDIEU, 2012).

Bourdieu reproduz um fragmento de texto de Alexandre Mackinnon, de 1828, onde a opinião pública é tratada como a transformação da verdade das classes dominantes na verdade de todos:

[A opinião pública] é esse sentimento sobre qualquer tema forjado pelas pessoas mais bem informadas, mais inteligentes e mais autorizadas moralmente na comunidade. Essa opinião é gradualmente difundida e adotada por todas as pessoas de alguma educação e adequadas a um Estado civilizado (MACKINNON apud BOURDIEU, 2012).

A soberania do povo, portanto, cai por terra quando percebemos que os movimentos da grande mídia muitas vezes não refletem o momento do país.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Anos antes do golpe de 1964, Binômio era voz solitária nas denúncias do que estava por vir: "Terrorismo tem alvo: Ditadura. Ministro da Justiça adverte: 'Direitas estão preparadas para tomar o poder' " (15 de janeiro de 1952); "Terrorismo da direita tem meta: golpe em nome do anticomunismo" (15 de janeiro de 1952); "15 mil carabinas para a revolução em Minas", contrabando para armar fazendeiros no interior ( 12 de fevereiro de 1962); "Levante militar para depor Jango" (30 de setembro de 1963). Em 2 de abril de 1964 o jornal O Estado de S. Paulo circula com a manchete "Vitorioso o movimento democrático"; no mesmo dia o jornal O Globo publica editorial intitulado "Ressurge a Democracia!"; no dia 3 o jornal O Dia comemora: "Fabulosa demonstração de repulsa ao comunismo".

Transcrevo aqui trechos publicados pelo O Globo e Binômio, que tratam o golpe de forma antagônica. Décadas depois, o jornal carioca admitiu que "apoio ao golpe de 64 foi um erro", mas o êxito das manobras militares e a manipulação eficiente da opinião pública contra o governo Goulart e seus projetos de reforma passaram por suas páginas e de tantos outros jornais Brasil a fora.

 

Jornal O Globo, abril de 1964, dois dias depois do golpe: "Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez. Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o Executivo."

 

Jornal Binômio, abril de 1964, uma semana antes do golpe: "No desespero de sua agonia, os privilégios dominantes crucificarão o Brasil. Para isso, tudo está pronto: as bombas de fabricação doméstica, as metralhadoras contrabandeadas, as milícias fascistas, e muito dinheiro, daqui e de fora. E, sobretudo, o ódio: o ódio ao povo, o ódio ao futuro, o ódio à liberdade."

 

Uma voz como a do Binômio faz falta em um tempo tão problemático como o nosso. Tentativas de repressão a movimentos sociais e de censura à arte ganham cada vez mais adeptos; a abundância nas denúncias de corrupção não inibiu novos crimes; um dos símbolos da impunidade atual fala "uai" e se banha nas águas do Leblon e o presidente mais impopular da história governa de costas para a população.

"O Binômio virou leitura obrigatória dos meios formadores de opinião, pois, até então, nenhum outro ousara dizer as coisas que o jornal do Euro e do Zé Maria tinha coragem de dizer," relembra Edgard de Mello, ex-presidente da Associação Mineira de Propaganda (RABÊLO, 1997, p.223). Carentes de um "binômio" que coloque a imprensa de cabeça para baixo novamente, continuamos "bem informados" por jornais apáticos, dependentes de governos, manipuladores da opinião pública de acordo com seus interesses comerciais e, pior ainda, sem nenhum senso de humor.

* Entrevista concedida ao autor na residência de José Maria Rabêlo em 25 de outubro de 2017, na cidade de Belo Horizonte.​
REFERÊNCIA:
BOURDIEU, Pierre. A fábrica de opinião pública. Le Monde Diplomatique Brasil. Jan. 2012. Disponível em: <pierre bourdieu>.Acesso em: 12 set. 2017.
CARTA, Mino. Opinião pública, o que é?. Carta capital. Jun. 2015. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/opiniao-publica-o-que-e>.Acesso em: 28 set. 2017.
DARNTON, Robert. Poesia e polícia: Redes de comunicação na paris do século XVIII / Robert Darnton; tradução Rubens Fiqueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 228 p.
MAGALHÃES, Mário.  UOL NOTÍCIAS. 19 capas de jornais e revistas: em 1964, a imprensa disse sim ao golpe. Disponível em: <https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/03/31/19-capas-de-jornais-e-revistas-em-1964-a-imprensa-disse-sim-ao-golpe/>. Acesso em: 16 set. 2017.
RABÊLO, José Maria. Binômio - edição histórica: O jornal que virou minas de cabeça para baixo. Belo Horizonte: Armazém de Ideias/Barlavento Grupo Editorial, 1997. 260 p.

Pesquisa desenvolvida por Lucas Rossi - 2017. Imagens do acervo da Biblioteca central da UFMG.

BINÔMIO 1952 - 1964

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